A ciência começa a levar a sério a hipótese de transformar o planeta vermelho num mundo habitável. Mas, será que podemos mesmo ou não passa de um sonho com laivos de ficção científica?
Durante décadas, a ideia de terraformar Marte, transformar o planeta para o tornar habitável para os humanos, foi vista como pura ficção científica. Hoje, no entanto, um número crescente de cientistas acredita que talvez não seja uma impossibilidade total.
Novos avanços tecnológicos, descobertas geológicas e progressos na biologia sintética estão a reabrir a discussão: poderemos, um dia, transformar Marte numa segunda Terra?
Este é um antigo leito lacustre, chamado Cratera Gale, uma depressão de 150 km de largura causada pelo impacto de um asteroide. Os cientistas sabem que Marte tinha lagos e rios, e talvez até um oceano, há muito tempo. Mas não sabem exatamente por que a água desapareceu ou quando (embora se acredite que tenha sido há milhar de milhões de anos). Contudo, os cientistas acreditam que é possível dar “outra vida” ao planeta vermelhor.
Um planeta frio, seco e com potencial escondido
Marte é um mundo árido, com temperaturas médias em torno dos –63 °C, e uma atmosfera extremamente fina, composta em 95% por dióxido de carbono, sem oxigénio suficiente para sustentar a vida humana. Ainda assim, há razões para o otimismo: estima-se que entre 1,6 e 2,3 milhões de quilómetros cúbicos de gelo de água estejam presos sob a superfície marciana, quantidade suficiente para cobrir todo o planeta com um oceano de 30 metros de profundidade.
Além disso, o solo marciano contém percloratos e minerais oxidantes que poderiam ser transformados, através de processos químicos ou biológicos, em nutrientes úteis. O planeta também recebe luz solar suficiente para suportar fotossíntese, ainda que apenas 44% da intensidade da que chega à Terra.
Da ficção científica à investigação real
A ideia de transformar Marte deixou de ser apenas uma fantasia de filmes como Total Recall ou The Martian. Em 2025, o Green Mars Workshop, organizado pela empresa Pioneer Labs, apresentou um relatório liderado pela Dra. Erika DeBenedictis, que defende uma abordagem científica e faseada à terraformação.
Há trinta anos, terraformar Marte era impossível. Hoje, é apenas extremamente difícil. O motivo? Avanços em áreas-chave como a biologia sintética, a engenharia aeroespacial e a modelação climática mudaram o panorama. Com foguetes como o Starship da SpaceX, o custo de transporte de materiais para Marte pode ser reduzido mil vezes, tornando possíveis experiências em larga escala.
Explicou DeBenedictis.
Fase 1: aquecer um planeta gelado
O primeiro passo seria aumentar a temperatura média de Marte em algumas dezenas de graus Celsius. Atualmente, a pressão atmosférica é tão baixa que a água líquida não pode existir à superfície. Para alterar isso, seria necessário libertar gases com efeito de estufa, como CF4 (tetrafluoreto de carbono) ou perfluorocarbonetos (PFCs) — que retenham o calor solar.
Estudos da NASA indicam que um aumento de cerca de 30 °C poderia iniciar o derretimento das reservas de gelo subterrâneo, libertando vapor de água e dióxido de carbono, o que amplificaria o aquecimento de forma natural. O resultado? A possível formação de mares rasos e lagos em regiões equatoriais.
Fase 2: semear vida microbiana
Depois de um ambiente líquido e relativamente estável, o próximo passo seria introduzir microrganismos adaptados. A biologia sintética permitiria criar extremófilos artificiais, micróbios capazes de sobreviver a radiação, baixas temperaturas e escassez de oxigénio.
Estes organismos poderiam converter CO₂ em oxigénio e biomassa, iniciando um ciclo de transformação atmosférica. Algumas espécies de algas e cianobactérias da Terra já demonstraram capacidade de sobreviver em condições marcianas simuladas, segundo testes realizados no Instituto DLR, na Alemanha.
Com o tempo, estas colónias poderiam escurecer a superfície, reduzindo a reflexão da luz solar e ajudando a reter mais calor, um processo semelhante ao que aconteceu na Terra primitiva.
Fase 3: criar uma atmosfera respirável
A longo prazo, o objetivo seria gerar uma atmosfera rica em oxigénio. No início, o processo ocorreria em cúpulas habitáveis de 100 metros de altura, onde seria possível produzir ar através de fotossíntese forçada ou eletrólise da água.
Gradualmente, plantas e árvores adaptadas poderiam começar a crescer fora dessas estruturas, libertando oxigénio para a atmosfera global. Contudo, estima-se que este processo demoraria entre 500 e 1.000 anos, e ainda assim, o ar seria demasiado rarefeito para respirar sem assistência.
Impressão artística de uma cidade em Marte, que a SpaceX quer ajudar a estabelecer com o seu sistema de transporte Starship. (Crédito da imagem: SpaceX)
Obstáculos e dilemas éticos
Os desafios técnicos são apenas parte da equação. Há questões científicas ainda sem resposta:
- O que existe sob as grandes calotas polares de Marte?
- Como reagiriam as tempestades de poeira, que já hoje podem durar meses, num ambiente mais húmido?
- Existem recursos naturais suficientes para sustentar um ecossistema estável sem depender da Terra?
E há, claro, os dilemas éticos. Se houver vida marciana nativa, mesmo que apenas microbiana, qualquer tentativa de terraformação poderia destruí-la irreversivelmente. Para muitos cientistas, a preservação do ambiente marciano deve ter prioridade sobre a colonização.
Benefícios para a Terra
Mesmo que nunca terraformemos Marte, as tecnologias desenvolvidas nesse esforço podem beneficiar diretamente o nosso planeta.
Sistemas de cultivo em ambientes extremos, circuitos fechados de reciclagem de água e oxigénio, e energias renováveis ultraeficientes seriam cruciais tanto para missões espaciais como para combater as alterações climáticas na Terra.
A Dra. DeBenedictis defende que “estudar a terraformação é, na verdade, estudar como tornar o nosso próprio planeta mais sustentável”.
De “podemos?” para “devemos?”
A transformação de Marte não vai acontecer em breve — nem deve. Mas a discussão já não é apenas teórica. Os investigadores pedem experiências laboratoriais e missões de teste, para avaliar técnicas de aquecimento localizado e biologia sintética controlada.
Pela primeira vez, a conversa passou de “podemos fazer isto?” para “devemos fazê-lo — e se sim, como?”.
E esta mudança, por si só, representa um enorme salto no modo como a humanidade olha para o seu futuro entre as estrelas.