Longe vão os tempos em que apenas os artistas do Photoshop conseguiam fazer imagens fake. Agora, com a inteligência artificial, está tudo à distância de um clique e de qualquer pessoa. E este fenómeno já se faz sentir na política. Como na acesa campanha presidencial nos EUA.
IA: Vale tudo, menos arrancar olhos
Com as eleições norte-americanas de 2024 a aproximarem-se (as primeiras desde a popularização em massa da inteligência artificial generativa), os especialistas temiam o pior: redes sociais inundadas com deepfakes gerados por IA, tão realistas que os eleitores ficariam confusos sobre o que acreditar. Até agora, isso não aconteceu.
Em vez disso, o que os eleitores estão a ver é muito mais absurdo: um vídeo do ex-presidente Donald Trump a cavalgar um gato enquanto empunha uma arma de assalto; a vice-presidente Kamala Harris com bigode e vestida com trajes comunistas; Trump e Harris a partilharem um abraço apaixonado.
Embora a IA esteja a desempenhar um papel importante na campanha presidencial, os maiores receios sobre como poderia ameaçar as eleições presidenciais dos EUA ainda não se concretizaram. Imagens falsas geradas por IA circulam regularmente pela internet, mas muitas delas são tão caricaturais e absurdas que até o espetador mais ingénuo dificilmente as levaria a sério.
No entanto, mesmo estes memes podem ser problemáticos. Fotos e vídeos gerados por IA, muitas vezes com o intuito de serem engraçados, tornaram-se ferramentas úteis para disseminar mensagens falsas, às vezes racistas, com um claro viés político — e os candidatos e seus apoiantes estão entre os que as partilham nas redes sociais.
Eleições nos EUA: teorias da conspiração
Donald Trump e muitos dos seus aliados promoveram repetidamente a teoria da conspiração infundada de que migrantes haitianos estão a roubar e comer gatos e cães em Springfield, Ohio e divulgaram memes gerados por IA relacionados com o tema. Um meme partilhado pela conta de Trump na rede Truth Social mostrava-o num jato de luxo, rodeado de gatos e patos brancos. Outro mostrava um grupo de gatinhos segurando um cartaz que dizia: “Não deixem que nos comam, Votem em Trump!”
Francesca Tripodi, especialista em propaganda online citada pela Associated Press, refere que estas imagens criadas por IA são novos veículos virais para transportar narrativas antigas anti-imigração. Ressalta ainda que quando políticos eleitos utilizam este tipo de imagens para perpetuar o racismo e a xenofobia, isso pode tornar-se um problema grave.
Os republicanos defendem essas imagens como piadas leves, subprodutos da personalidade de Trump. Segundo o estratega republicano Caleb Smith, existe uma cultura de personalidade em torno de Trump que encoraja esse tipo de estilo de comunicação exagerado, transformando as coisas em memes cómicos, com a intenção de entreter, não enganar.
The Kiffness x Donald Trump – Eating the Cats 😿🐶 Stream / Buy: https://t.co/r9KxcnOn4n pic.twitter.com/bZpytKBEdO
— The Kiffness (@TheKiffness) September 13, 2024
IA por todo o lado
Contudo, os apoiantes de Trump não são os únicos a criar memes com IA. No entanto, parecem estar a utilizar geradores de imagens por IA mais do que os seus homólogos democratas. Alguns utilizadores mais à esquerda publicaram imagens de IA a gozar com Elon Musk, proprietário da plataforma X (antigo Twitter) e apoiante declarado da campanha de Trump.
Os democratas também partilharam imagens geradas por IA de Trump algemado e a ser perseguido pela polícia quando o ex-presidente estava em tribunal, em Manhattan, no ano passado.
Apesar de tudo, a campanha de Kamala Harris não tem utilizado conteúdo gerado por IA, preferindo recorrer a tendências no TikTok e a outros memes que não exigem modelos de IA para serem criados. Segundo fontes da campanha democrata, o uso autorizado de IA generativa está restrito a ferramentas de produtividade, como análise de dados e assistência na codificação.
Falsear imagens não é novidade
A utilização de imagens falsas, divertidas e frequentemente absurdas para pontuar politicamente não é novidade. Mas, ao contrário das imagens montadas no Photoshop ou de cartoons políticos, as imagens geradas por IA têm um impacto mais forte devido ao seu hiper-realismo, atraindo nova atenção para uma mensagem política.
Apesar de algumas das imagens relacionadas com animais de estimação em Springfield serem caricaturais e ridículas, muitas perpetuaram uma teoria da conspiração prejudicial sobre uma comunidade que, desde então, recebeu ameaças de bomba, levando à evacuação de escolas e edifícios governamentais.
A facilidade e rapidez da criação de conteúdos políticos extravagantes com IA, acessíveis a qualquer pessoa com uma conexão à internet, tornaram-na uma ferramenta barata e conveniente para campanhas responderem às tendências online e reforçarem mensagens.
Mas atenção que este fenómeno não se limita aos Estados Unidos, tendo sido observado, por exemplo, em eleições na Indonésia, Países Baixos. Deepfakes mais sinistros também tentaram influenciar eleições em várias partes do mundo. Em Portugal já há algumas tentativas de se massificar esta forma de fazer política. Irá vingar?